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terça-feira, 27 de março de 2007

Entre Parmênides e Einstein - Gonçalo Armijos Palácios

A discussão pública, que busca a verdade e não a autopromoção, é até hoje o modo como se faz filosofia naquelas partes do mundo em que ela está viva; nos outros lugares, suprimiu-se a figura do debatedor

Seja como for definida a filosofia, não se pode negar que ela nasce como uma busca pela verdade. Depois, filósofos importantes chegaram a pensar que a verdade era inatingível, mas, paradoxalmente, no mesmo instante em que proferiam tal sentença pretendiam dizer uma verdade incontestável. Porque, de uma ou de outra maneira, seja no nível em que nos situemos, gostaríamos de evitar o erro e de chegar à verdade sobre as coisas. O ser humano poderia ser definido como o único animal que conscientemente se debate na luta entre o certo e o errado. Talvez por isso chegamos a ser o que hoje somos. Com os antigos não foi diferente. Assim, os primeiros filósofos opuseram o conhecimento à mera crença e foi assim como a filosofia se constitui no seu início.

Gosto de Xenófanes talvez por isso, por ter sido um dos primeiros filósofos que se preocupou claramente com a questão da verdade e do conhecimento. Pois, em poucas palavras, tudo se reduz à diferença entre o que é e o que não é. E ninguém parece que foi tão enfático sobre a importância dessa diferença como Parmênides. “Jamais obrigarás os não-seres a ser”, advertia. Ou, para dizê-lo de outro modo: não confundas o que é com o que não é. Daí suas famosas fórmulas: o que é, é; o que não é, não é! E conhecer implica saber os dois: saber o que é e distingui-lo do que não é.

Várias são as formas pelas quais os filósofos acreditaram que se chega ao conhecimento. Uma delas nos interessa aqui e é uma das maneiras que existe desde os antigos gregos: o diálogo, a oposição de idéias.

Vejo Parmênides irritado com os que faziam uma interpretação vulgar de Heráclito como é irritante hoje ouvir das pessoas, sem ter a menor idéia do que Einstein disse, que “tudo é relativo”. Imaginam que Einstein teria construído uma teoria física tão importante baseado na idéia tola e completamente falsa de que “tudo é relativo”. De maneira análoga, Heráclito dizia que tudo era e não era. Mas suas teses foram interpretadas no mais errôneo dos sentidos e Parmênides fez o possível para chamar a atenção para o fato de que, sob o ponto de vista lógico, o que é só pode ser, e que o que absolutamente não é, simples e absolutamente não pode ser. Assim, se quatro é o dobro de dois, então é absolutamente necessário que quatro não possa ser igual ou menor a dois. Do mesmo modo, se alguma coisa diz a célebre fórmula de Einstein (E=mc² ), então é isso que quer dizer e não outra coisa. E, o que é mais importante, se E=mc² é verdadeiro, então E=mc2 é falso. Podemos considerar inúmeros exemplos da física ou da astrofísica: se é verdade que o universo está em expansão, então isso é absolutamente verdadeiro e dizer o contrário é completamente falso. Se é verdade que as galáxias estão se afastando umas das outras, então é falso dizer que se estão aproximando. Nada há de relativo nisso, ou o universo está em expansão, ou está estático ou está regredindo sobre si próprio. Juntemos agora, maravilhosamente, Parmênides e Einstein: se o universo tem um conjunto determinado de propriedades, então tem essas propriedades e não outras. Mais ainda: se é essencial ao universo ter determinadas propriedades, então é necessário que as tenha, o que faz do universo o que é, e só o que é. Portanto, Parmênides e Einstein de novo: o universo, o ser, são o que são, e não poderiam ser, absolutamente, o que não são!

O que estamos tentando fazer, lembre-se, é estabelecer a distinção entre dialética e sofística, entre filosofia e pseudo-saber. Ora, não é uma distinção que já tenha desaparecido. A distinção entre filósofos e sofistas ainda subsiste, só que os sofistas tomam diversas formas e é difícil reconhecê-los. Aliás, sempre foi. E foi para dar subsídios para reconhecê-los que Platão escreveu o diálogo que nos ocupa desde o artigo anterior: O Sofista.

O termo ‘dialética’ chegou a ter muitos significados. Hoje tem tantos, com efeito, que eu mesmo praticamente nunca o uso. Aliás, por muito tempo fiz questão de não empregá-lo em artigos ou em sala de aula. Nestes artigos abro uma exceção porque o estou usando no seu significado original, como era empregado pelos antigos gregos e, principalmente, como é usado nos diálogos de Platão. A dialética, como Platão emprega o termo, é a busca racional da verdade baseada no diálogo, no debate de idéias entre dois ou mais interlocutores cujo interesse seja realmente o conhecimento e não a exibição pessoal ou qualquer outro objetivo. Tal exercício dialético, portanto, não pode ocorrer entre quaisquer interlocutores. Deve ocorrer entre aqueles que sinceramente procuram a verdade e o conhecimento. Não podemos discutir, portanto, com aqueles que acham que sempre estão certos. Tampouco com aqueles que falam de um jeito tão complicado que seguramente nem eles mesmos se entendem. A clareza, penso, e faço questão de frisar isto, é sinal de honestidade intelectual. Essa honestidade intelectual da qual os antigos filósofos dão tantas provas.

No Sofista, como tínhamos visto, um interlocutor vindo de Eléia, o Estrangeiro, é instado a dizer qual é a diferença entre o sofista, o filósofo e o político. Antes, porém, querem saber a forma como será levada a discussão. Aqui há uma intervenção de Sócrates em que há uma referência ao método de Parmênides. Dirigindo-se ao Estrangeiro, diz: “Mas dize-nos antes se, de costume, preferes desenvolver toda a tese que queres demonstrar numa longa exposição ou empregar o método interrogativo de que, em dias distantes, se servia o próprio Parmênides ao desenvolver, já em idade avançada, e perante mim, então jovem, maravilhosos argumentos?”¹ Se esta intervenção de Sócrates não é um mero recurso literário de Platão mas uma maneira de referir um fato ocorrido, então Sócrates deve ter se inspirado para sua maiêutica no método interrogativo de Parmênides. Isso é muito provável já que os antigos gregos se caracterizaram por ser uma cultura que, como poucas, privilegiou a discussão e o debate públicos e certamente Sócrates não foi quem inaugurou essa tradição. A resposta do Estrangeiro é significativa: “Tenho receio, Sócrates, aparecendo agora frente a vós pela primeira vez, de conversar não mediante pequenos diálogos mas desenvolvendo um longo discurso por mim mesmo, seja frente a outro, seja como se fizesse uma demonstração”. (217e) A vantagem do diálogo é que, aos poucos, os presentes podem perceber como se chega a determinadas conclusões e por que se aceita certas teses e não outras. Para isso, o diálogo é o melhor caminho. O longo discurso, a longa demonstração, não necessariamente esclarecem a origem de certas teses nem como foram fundamentadas certas afirmações. O diálogo, o debate aberto bem-intecionado, portanto, são um excelente caminho para chegarmos com segurança a conclusões bem estabelecidas. Isso ocorre desde os gregos. Nos lugares em que hoje se faz filosofia, os periódicos especializados estão cheios de discussões, debates, objeções, respostas às objeções, réplicas e tréplicas. O artifício sofístico contra quem quer fazer filosofia, hoje, consiste em ignorar a discussão ou suprimir a figura do debatedor.


1 O Sofista, 217 c. In: Platão, Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1972. (Col. Os Pensadores)

GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS, filósofo e professor da UFG, é articulista do Jornal Opção. Esse texto foi retirado de sua coluna Idéias, disponível no site www.jornalopcao.com.br .

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