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segunda-feira, 26 de março de 2007

Justiça divina, Justiça humana - Gonçalo Armijos Palácios

O ato maior de desespero e impotência humanos é um povo, sem ter amparo na Terra e levantando as mãos para os céus, clamar por justiça


Segundo Hesíodo, na sua Teogonia, Zeus casou-se com Têmis, sua segunda esposa, com quem teve Díke. Elas podem ser consideradas como a Justiça e a Lei. Mas é a forma como Díke aparece nesse poema que é de grande interesse para nós. Com efeito, Zeus tem Métis (deusa da prudência ou da sabedoria) como sua primeira esposa. Grávida de Atena e já muito próxima do parto, Zeus a engole. Assim, ele incorpora a prudência que lhe permitiria
decidir entre o bem e o mal. Mais tarde Atena nasceria da cabeça do próprio pai. Depois da união com Métis, Zeus junta-se a Têmis (a Justiça) da qual teria como filha Díke (a Lei). “Têmis” (thémis) possui vários significados no grego antigo: “aquilo que é estabelecido, lei determinada pelo costume, decretos dos deuses, decisões de reis ou juízes”¹ , “direito divino, lei, costume”² , “o estabelecido como norma, lei divina ou moral, costume, vontade dos deuses”.³ Se, por um lado, a palavra ‘têmis’ está relacionada com o superior e abstrato, o termo ‘díke’ está mais próximo do humano e concreto (“costume, uso, direito, lei, ordem”).

Tudo isso nos interessa porque, como temos visto, Zeus incorpora, na concepção de Hesíodo e dos gregos antigos, tanto a sabedoria como a ordem e o equilíbrio. Desse modo, a lei dos homens, que se ampara na deusa Díke, está por sua vez sustentada por uma justiça superior, Têmis, que encontra sua garantia fi
nal em Zeus, rei de deuses e homens.

Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo queixa-se de que “Bem rápido corre o Juramento por tortas sentenças/ e o clamor de Justiça (Díke), arrastada por onde a levam os homens/ comedores-de-presentes e por tortas sentenças a vêem!/ Ela segue chorando as cidades e os costumes dos povos/ (...) que a expulsaram e não a distribuíram retamente.” (vv. 219-224) Podemos ver claramente que Hesíodo adverte sobre a possibilidade de haver uma justiça humana que se afaste da divina. Hesíodo percebe que é por seus interesses (“comedores de presentes”) que reis e homens em geral podem manipular a distribuição do que a cada um por direito cabe. A lei humana é uma, a divina é outra. E esta, por sua vez, sustenta-se numa justiça superior. Dela ninguém passa despercebido. Com efeito, os que dão “sentenças retas, em nada se apartando do que é justo” vêem sua cidade florescer e Zeus os mantêm longe da guerra. (vv. 225-229) Já àqueles que agem com violência e insolência (húbris) Zeus têm reservado a Justiça (Díke). Por essas razões, Hesíodo adverte: “E também vós, ó reis, considerai vós mesmos/ esta Justiça, pois muito próximos estão os imortais/ e entre os homens observam quanto lesam uns aos outros/ com tortas sentenças, negligenciando o olhar divino.” (vv. 248-251) Essa advertência lembra a que depois faria Heráclito em linguagem obscura: “do que jamais mergulha, como alguém escaparia?” Do olho atento dos deuses, da Justiça, d
a Lei e do próprio Zeus, não escapam os homens, mesmo que entortem suas sentenças, isto é, mesmo que entortem os próprios costumes e suas próprias leis que desses costumes derivam.

A punição pelos excessos, pelo desvio da reta Justiça, não é limitada aos indivíduos. Cidades inteiras, segundo a concepção que estamos examinando, podem ser punidas pelas ações injustas de um só homem. “Amiúde — tinha dito nos versos 240 a 243 — paga a cidade toda por um único homem mau/ que se extravia e que maquina desatinos./ Para eles do céu envia o Cronida [Zeus] grande pesar: fome e peste juntas, e assim consomem-se os povos...” E não deixa de insistir depois na diferença entre a justiça divina e humana: “O olho de Zeus que tudo vê e assim tudo sabe/ também isto vê, se quiser, vê e não ignora/ que Justiça é esta que a cidade em si encerra.” (vv. 267-269) Desses versos só podemos concluir que Hesíodo está denunciando a possibilidade de as leis da cidade serem, em si, injustas. A concepção de justiça que vemos nestas passagens não poderia estar mais distante do relativismo jurídico de um Trasímaco — e dos contratualistas em geral — p
ara quem a justiça consiste exatamente no que o soberano determina, isto é, que a justiça é o interesse dos poderosos. Esses versos dizem exatamente o oposto: a justiça dos homens pode muito bem se afastar totalmente do que é justo em si, do que é a justiça e a correção em si mesmas, absolutamente. Hesíodo é claro e chama atenção para o fato de Zeus estar observando, com respeito à justiça dos homens “que Justiça é esta que a cidade em si encerra”! (v. 269)

Se não fosse assim, qual a esperança dos homens verdadeiramente justos? Como e por que agir corretamente? Como e para que trabalhar e lutar diariamente pelo sustento, se qualquer um pode ultrapassar os seus limites e insolentemente se apropriar do fruto de um trabalho que não foi seu? Num país de celerados, de oportunistas e ambiciosos, quem vai querer desejar ser justo? Numa cidade em que os que não trabalham se apropriam do esforço alheio, por que trabalhar e respeitar as leis? Por que obedecer a leis que a maioria não obedece? Todas estas são as questões postas por Hesíodo. E todas elas dizem respeito à relação entre o
trabalho e a esperança de uma recompensa merecida. Vejamos esta terrível confissão: “Agora eu mesmo justo entre os homens não quereria ser/ e nem meu filho, porque é um mal homem justo ser/ quando se sabe que maior Justiça terá o mais injusto./ Mas espero isto não deixar cumprir-se o tramante Zeus!” (vv. 270-274) Efetivamente, pois seja na época de Hesíodo, seja hoje, a única esperança que a pessoa honesta tem é a de que, no final, a justiça seja feita!

GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS, filósofo e professor da UFG, é articulista do Jornal Opção (esse texto foi retirado do Jornal Opção onde o professor Gonçalo semanalmente colabora com a coluna Idéias, confira www.jornalopcao.com.br )

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